Na
hora do almoço, bem no auge do rush, ali, na ponte que separa os bairros. Bem
próximo à rodoviária. Olhou para um lado, mesmo a rua sendo de mão única, virou
o pescoço para o outro. Ao reconhecer os dedos entrelaçados, sentiu
imediatamente a face queimar. Um frio tomou o fundo da alma e atingiu tão
rápido, quanto fogo em um rastro de pólvora, todo o resto do corpo. Durante os
poucos passos que o casal deu em direção a Carlos Miguel, o relógio parou. O
insolente rapaz se viu atravessando a rua e cruzando, propositalmente, com o
caminhão de entrega. O sangue espirrando, os gritos pavorosos, porém, antes que
o primeiro passo do casal terminasse, Carlos já havia regressado ao seu corpo e
sentia o ponteiro dos segundos correrem tão lentos, se comparado diretamente aos
batimentos de seu coração. No segundo passo lembrou-se dos últimos anos, dos
choros, sorrisos, a viagem para o interior e até o primeiro porre juntos,
buscou nos detalhes o momento em que se perde alguém. Num suspiro profundo,
tentou em vão esquentar a espinha, buscava jogar fora o coração, as
recordações. Durante o terceiro passo, presenciou a cena dos dois. Na cama durante
a noite, depois de uma festa sem sentido, beijos, elogios fálicos ao membro
alheio, coisas dos dois que agora pertenciam aos três, reviveu no frio todo o
calor vindo dos gemidos sacanas, e, mais uma vez, num suspiro, quis abstrair tudo
aquilo. Seguir seu caminho. Sem ser notado, invisível, exatamente como ele era
pra ela. No quarto e quinto passo, Carlos Miguel estava em transe. Naquela
calçada, com o rosto pegando fogo e a espinha gelada, ele viu passar alguém que
pra ele foi muito, de mãos dadas a outro, sorrindo como se o mundo daqueles segundos em
diante não ruísse em gelo e fogo.
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